Wednesday, July 1, 2009

Ritual Diário

Era uma vez, num reino longíncuo, um castelo. Nesse castelo vivia um rei, uma rainha, trezentos e setenta e quatro criados, cento e noventa e dois vassalos, trinta e cinco mensageiros, setenta e quatro frades e uma princesa.

Era tambem uma vez, nesse mesmo reino longíncuo, um lenhador. Era um homem pobre, mas era tudo menos um pobre homem. Trabalhava de sol a sol para poder sustentar-se a si, à sua mulher e aos seus sete filhos. Inicialmente tinha treze filhos, mas seis haviam morrido por estarem mal nutridos e por trabalharem de mais, nos campos do rei. O lenhador tinha prometido a Deus que nao deixaria que mais nenhum moresse, mas, embora tivesse arranjado mais dois trabalhos, os rendimentos nem sempre chegavam a casa. Dos 14 reis que ganhava por semana, 7 eram para o palácio real, 2 para o senhorio da casa e apenas 5 lhe sobravam para poder alimentar a familia. A mulher tinha tido um acidente enquanto trabalhava na tecelagem e ficara inapta de realizar quaisquer tarefas remuneradas. Os seus filhos poderiam trabalhar, como todas as crianças do reino, mas o lenhador quis que estas fossem para a escola e aprendessem, para poderem ser "algo mais".

Um dia a princesa foi dar um passeio pelo campo. Viu os trabalhadores de pele morena, curtidos do sol, fazendo lhe lembrar os piratas das historias, e pensou "pobres coitados, tão mal vestidinhos".

Um dia o lenhador foi ao castelo. Viu os guardas bem vestidos e bem alimentados. Olhou para os seus proprios pés descalços, e invejou-lhes as botas.

Nos campos, velhos e crianças, todos em conjunto lavravam as terras e plantavam novas culturas.

No castelo, criadas e criados, todos em conjunto corriam apressados dum lado para o outro carregando consigo tijelas de porcelana, copos de vidro, castiçais de ouro.

A princesa voltou ao castelo, esqueceu os trabalhadores que vira e foi escolher entre os seus milhares de colares de perolas um que ficasse bem com o seu majestoso vestido. Era um ritual diário. Demorava três horas a vestir-se para o jantar. No jantar apenas estavam presentes o rei, seu pai, a rainha, sua mãe, e trezendos e dois criados dos trezentos e setenta e quatro. Os criados serviam os cinco pratos e ficavam encostados à parede, esperando que Suas Majestades terminassem a refeição. Era um ritual diário.

O lenhador voltou a casa, esqueceu os sapatos brilhantes dos guardas e foi abraçar a sua mulher. Era um ritual diário. Demorava cinco minutos a abraçar cada um dos seus sete filhos e dez a abraçar a sua mulher. Pôs o pão do jantar em cima da mesa de madeira. A sua mulher levantou-se e foi buscar os pratos de barro. Comeram pão com água e meia maçã cada um. Era um ritual diário. Foi pôr os seus filhos na cama, enquanto ouvia os seus pequeninos estomâgos a gritarem de fome. Era um ritual diário.

Olhou pela janela e viu o castelo ao longe, iluminado, sumptuoso. "Um dia, os meus filhos hão de ter também um castelo", pensou. Mas era apenas um ritual diário.

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